Guiné Bissau, 25 de Abril de 1974.
Amélia Folques
Nesse dia estava na 3ª classe numa escola pública em Bissau.
O dia iniciou-se como qualquer outro dia, fui para a escola normalmente. No caminho não havia nenhum desassossego, confusão ou mesmo agitação. Nada que nos indicasse o pesadelo que se iria iniciar dentro de poucas horas.
Já estava na sala de aula quando pensei que a guerra tinha invadido Bissau. Começou com sons estranhos, vozes altas depois olhando pela janela via-se uma confusão de jipes a subir e descer aquela rua com negros que já não se encontravam fardados e aprumados, que empunhavam armas com um ar perfeitamente ensandecido. Aos gritos coléricos, com uma postura agressiva e intimidante.
O que até então tinha sido uma gente cordata, simpática e próxima transformaram-se em gente hostil, rebelde, alterada e ameaçadora. Foi tudo tão inesperado e assustador.
Nem sei quem me foi buscar á escola e depois deduzo que fiquei fechada em casa até embarcar. Suponho que tenha vindo para Portugal Continental poucos dias depois. Realmente a última memória que eu tenho da Guiné foram os tumultos na rua, as feições carregadas na cara daquelas gentes vistas da minha sala de aula, o desvario total.
O meu horror foi tanto que não quis ouvir falar de África durante pelo menos uma década.
Nem África nem Africanos.
Talvez o que mais me custou no cimo dos meus 8 anos foi pelo muito que eu tinha-me esforçado para aprender a viver e a amar aquela terra com tantas limitações e constrangimentos, a adaptar-me aquela realidade tão diferente de todas as outras que eu já tinha experienciado. Onde tinha assistido a tanto sofrimento por parte de toda a família em especial da minha Mãe e nunca termos desistido dela, termos superado todos os obstáculos e essa mesma terra tinha-se tornado no meu mais profundo inferno de um dia para o outro.
O 25 de Abril de 1974 foi o dia em que perdi a minha inocência em relação ao ser humano, assisti ao pior dele.
Essa foi a minha percepção dos acontecimentos nos meus fabulosos 8 anos da minha existência na Guiné no dia 25 de Abril de 1974.
O que para mim sempre foi um mistério foi ter trazido a minha boneca negrita de farta cabeleira em carapinha e nunca tê-la posto de lado. Era um dos meus bebés chorões preferidos.
Posteriormente vivendo em Oeiras as minhas amigas nunca perceberam porque é que eu gostava tanto de brincar com uma boneca de cor, quando tinha outros bonecos lindos loirinhos de olhos azuis, mais sofisticados e Europeus.
Passado tanto tempo, décadas, agora eu presumo que foi para manter a minha ligação com África neste caso em particular com a Guiné. Uma forma de não esquecer que tinha pertencido àquele Mundo. Mundo esse onde tinha vivido e aprendido tanto, tudo tinha valido a pena com aquela experiência até chegar esse dia.
A minha boneca foi a forma que arranjei para manter o fio fino e frágil da minha inocência e da minha fé no Homem cuja corrente tinha-se fragmentado dentro de mim naquele dia tão violento.
Cuidar dela foi a forma para não sucumbir a ódios, preconceitos, discriminações e mesmo rancores.