Desabafos.
Amélia Folques
Na minha busca incessante para encontrar o sentido ou a total ausência de sentido da vida encontrei algo que acho curioso que é o peso e a importância das palavras. Isto resultado das minhas poucas aulas de Yoga. A vantagem da Yoga é que nos trás proveitos físicos e abre uma porta para todo um mundo que devido à nossa vida mais ou menos turbulenta não nos debruçamos, o nosso cérebro e como ele nos domina.
A palavra pode ditar os nossos actos, por vezes indirectamente. Ao oralizar ou verbalizar mesmo que seja mentalmente uma palavra estamos a desencadear no nosso cérebro um conjunto de respostas ou acções de acordo com essa palavra.
Enfim essa foi a minha “discussão” ontem com uma amiga. Ela disse que estava “farta” de tudo que está a viver neste momento, efectivamente não se pode dizer que a vida dela no último ano tenha sido um mar de rosas, problemas de saúde vários e muito desagradáveis. Mas bolas está viva, a recuperar com amigos e família, com acesso a uma boa rede de profissionais, economicamente estável. Deve estar grata à vida e ao que a rodeia apesar de tudo, o saldo da balança é bem positivo. Em momentos de prova não está só, criou um conjunto de amigos sinceros e tem familiares que a apoiam. Tem mais do que talvez ¾ da população mundial: casa, comida, segurança. Além de ter todas as suas faculdades activas e tem dons que a maioria de nós não os têm como pintar ou escrever, apesar dos seus infortúnios recentes tem que estar grata à vida.
A palavra farta tem que ser substituída por grata ou agradecida, é urgente.
Logo pela manhã vinha a rabujar sozinha porque o sol anda preguiçoso, detesto casacos no Verão e adoro calor a estalar, um Verão a sério. Vinha no carro a ouvir as notícias e oiço os fogos na Grécia, lembrei-me da desgraça do ano passado, acho que ficámos todos irremediavelmente traumatizados com os incêndios no nosso país e pensei nas minhas lamentações matinais. Tenho mais que estar grata e feliz com este Verão bem ameno porque Verões escaldantes podem trazer resultados angustiantes, temos bem presente tempos desses.
Quando foi do debate sobre a eutanásia falou-se do caso mediático do cientista Australiano com 104 anos que considerava que a sua vida já não merecia ser vivida. Houve um amigo meu que me disse nessa ocasião que o Australiano deveria estar grato por estar vivo e poder ver o pôr-do-sol ao fim do dia. Estar grato nem que seja por ver a beleza infinita deste planeta que se repete diariamente, incansavelmente. Morreu a ouvir Hino à Alegria, da 9ª sinfonia de Beethoven e rodeado da família, questiono-me se não teria sido mais enriquecedor ter vivido mais algum tempo podendo desfrutar do amor e paz da família e ouvir o milagre fascinante que é a música. Este homem tinha tudo para estar grato e estava profundamente farto, exausto mesmo. Talvez porque tenha interiorizado sistematicamente a palavra cansado, farto, esgotado, desmoralizado…
É o núcleo familiar que exige esforço, trabalho, disponibilidade, compreensão e podemos estar fartos deste peso, dessa avalanche de exigências diárias. O sentimento é grato por existirem, preencherem a nossa vida, dar uma razão para seguir em frente sempre, sem eles a vida teria menos sentido, a bênção e paz que é esquecermo-nos de nós e poder focar em alguém dando amor incondicional, ter alguém para dar um beijo de boa noite ou mesmo um abraço para reconfortar ou mesmo mimar.
É o resto da família que basicamente está entretida em ver os teus deslizes, ou atropelos para poder apontar ou alvitrar inquisitivamente os teus insucessos. Mas basicamente é essa a sua função talvez por nos conhecerem desde sempre acham que podem-nos julgar facilmente devido à proximidade. E temos que estar gratos nem que seja por existirem e seguirem a nossa vida com tanto escrutínio, interesse e o tal dito afecto familiar.
É a selecção de gente ruim, mesquinha, desagradável ou amargurada que a vida nos coloca de vez em quando de forma a termos a perfeita consciência de não tornarmo-nos assim. Temos que estar gratos por cruzarmo-nos com eles para seguir sempre no caminho oposto a estes sentimentos.
É todo o nosso querido passado que correu menos bem em alguns aspectos e temos que estar gratos pelo que de pior aconteceu e assim aprendemos com os erros e ganhámos confiança e segurança em nós para enfrentar os desafios do presente com garra e ilusão e entusiamo para o futuro.
É o cão que larga pêlo, ladra ou lambe toda a gente e só faz confusão em casa, mas em vez de se enervar com o bichinho e dizer que está farto a postura é estar grato nem que seja quando chega a casa está lá o fofinho a saltar com o rabinho a abanar só de o ver. Chegar a casa e presenciar a alegria do animal dá uma satisfação imensa.
É as plantas de que tanto gostas mas estás farto de regar com cuidado. Mas quando florescem vez o teu trabalho recompensado, temos mais de estar agradecidos por ajudar a que este processo aconteça e dê flor. Gratos por fazer acontecer este pequeno milagre da natureza.
É tantas coisas que fazem parte na nossa vida e dizemos que estamos fartos, talvez porque não paramos para pensar que estão lá porque são a nossa rotina e ajudam a um certo equilíbrio. Ou mesmo aqueles acontecimentos que atravessam a nossa vida e ficamos logo saturados e eriçados e talvez ocorram para sabermos estimar o que existe de bom no nosso quotidiano e estarmos gratos pela vida que temos.
E assim sucessivamente…
Dizemos a palavra obrigada com alguma despreocupação, por vezes mesmo com desinteresse ou leviandade, quase automaticamente. Não lhe fazemos a devida reverência pois ela encerra um conjunto de sentimentos que nos enriquecem a gratidão por algo; o reconhecimento do esforço alheio; o interesse, o cuidado ou mesmo o amor que sentimos do outro por nós; a gentileza, a dedicação ou preocupação de alguém por um conhecido ou mesmo desconhecido.
Temos que dizer obrigada, sou grata mais vezes, do fundo do coração. Ter sempre presente o que estas palavras contém e repetir como um mantra, uma oração. Incessantemente para o nosso foco ser sempre: o amor e não o ódio, o que é bom e não o mau, o que nos dá paz e tranquilidade e não a agitação e turbulência, valorizar o “pão-nosso de cada dia” como algo único e inestimável, reconhecer o nosso nada perante o universo, apreciar tudo o que a mundo nos dá com os sentidos despertos.
Se interiorizarmos a gratidão certamente iremos desfrutar mais a vida. E o nosso obrigada, sou grata será dito não de forma automática mas sim consciente com todo o significado e sentimento que encerra.
Vamos dar ordem ao nosso cérebro para todos os nossos actos ou discursos sejam demonstração de gratidão perante: os outros, a natureza, a vida, o universo, Deus, o que seja. Temos muito mais para agradecer do que para sermos ingratos ou ressentidos. O retorno que esta constatação nos proporciona dá paz e serenidade, saúde física e mental.